Saúde

O Fim da Fisioterapia

Analisar a importância da terapia manual na fisioterapia contemporânea terá obrigatoriamente de nos conduzir a um processo reflexivo do estado da profissão. Onde estamos, de onde viemos e para onde queremos ir. Estaremos a caminhar para o FUTURO ou a correr para o FIM da profissão?

Artigo da autoria de Ricardo Vieira,

Fisioterapeuta | Osteopata | Blogger | CEO & Founder EMOV


Eis nos aqui, seres vivos & humanos, num lugar e num tempo único, pleno em incertezas, a derivar sobre o passado e o futuro (se é que ele existe) da fisioterapia. É quase promiscuo vaticinar o fim de uma das profissões mais relevantes e mais bem organizadas dos sistemas de saúde, que se inspirou e mesclou de uma parafernália de técnicas datadas desde o início da humanidade e que tem contribuído para o desenvolvimento da saúde de milhões de pessoas em todo o mundo.


Contudo, eis-nos aqui. Num ponto critico da vida desta profissão que acompanha o ser humano desde o seu nascimento até ao momento da sua morte. Neste instante a que chamamos de vida, o tempo e a evolução conduziram-nos a dias de mudanças pessoais, sociais e corporativas. Algumas destas alterações tornaram-se mais evidentes e salientes nesta época de low touch economy provocada pela COVID-19, contudo as alterações económicas, dos sistemas de saúde, dos comportamentos epidemiológicos das doenças e o liberalismo dos mercados já impunha a sua força e com isso a necessidade de mudança. O negacionismo como característica da fisioterapia e dos fisioterapeutas conduziu-nos a um ponto em que, se não houver mudanças viscerais no rumo da profissão, podemos em poucos anos tornar-nos obsoletos. Há que rasgar com a ideia de sermos os “queridinhos” e os “terapeutas” da saúde. Caímos num paradoxo mortal, ou numa espiral de feedback do inferno, em que a profissão não pode desenvolver o seu futuro devido às cicatrizes queloides do passado. Este paradoxo impede a fisioterapia de se ver a ela própria uma vez que tal facto desafia as premissas e os princípios que estiveram na génese da profissão. A terapia manual, o dualismo cartesiano da dor, o estruturalismo e reducionismo da abordagem biomecânica da saúde e da doença coincidiram numa visão do corpo como uma máquina potenciando dessa forma uma miopia vigente no dia a dia do fisioterapeuta.


Acrescente-se a tudo isto um elitismo e narcisismo insuflado pela sua própria história de sucesso e dominância na área de reabilitação física. Contudo o problema das maiorias não se centra no facto de não conseguirem ver as minorias, mas sobretudo no de não se conseguirem ver a elas próprias. Mais ainda, a essência das oligarquias não reside na transferência de pai para filho, mas na permanência de uma certa visão do mundo e de um certo estilo de vida que OS MORTOS IMPÕEM AOS VIVOS. E, nesse sentido, urge refletir acerca do curso da profissão por forma a combater o desconhecimento vago e opaco que os fisioterapeutas têm da própria identidade profissional, pois esta poderá ser uma das únicas maneiras de combater e a atualizar o seu próprio sistema de crenças. Devemos abraçar o medo, com a certeza que a incerteza é a única certeza que temos, não esquecendo que o “estar aqui hoje” não é um local, mas sim um tempo que amanhã já será passado.


Conhecer e compreender o passado poderá ser um processo chave para fomentar a criação de uma identidade profissional. O conhecimento da origem, da evolução e desenvolvimento da profissão permite estabelecer bases sólidas por forma a que se preencha um espaço vazio no seio da profissão, que nos permita perceber quem somos, onde estamos e para onde queremos ir.


As terapias físicas estão para o ser humano como a migração está para as aves. Evoluíram, viveram entre o sagrado e o profano, renasceram até ao ponto onde se estabeleceram sobre a forma de medicina ortopédica. Contudo a sua evolução não se deteve, sobreviveu a vários momentos marcantes da história contemporânea e atualmente conhecemo-las sobre a forma de FISIOTERAPIA. Toda a sua evolução pode ser acompanhada na seguinte infografia.



O prelúdio da fisioterapia nasce em 1894 no momento da fundação da Society of Trained Masseuses (STM). Durante a sua história centenária há algo que se repete sucessivamente desde a sua génese ao momento atual: uma noção de futuro e de posicionamento brilhante. Com o foco na germ theory a medicina mudou o seu rumo, deixando um espaço vago no campo das medicinas físicas. Este espaço foi conquistado pelos membros da STM através da criação de uma estratégia de desenvolvimento e comunicação que permitiu navegar num mar de instabilidade política e social através de vários pontos essenciais (respeito entre os pares, criação de uma identidade profissional única, valorização social, networking e exportação). Desde cedo os seus membros, que efetuavam um exame de acesso para se poderem registar (que incluíam casos clínicos assim como perguntas de anatomia, fisiologia, biomecânica, moral, ética e exame prático), lideraram o processo de mudança no campo da reabilitação e perceberam que a melhor forma de lidar com a desconfiança vigente era através da criação de valor ao serviço. A descrição histórica da profissão permite-nos perceber que foi nos momentos mais impactantes da história da humanidade que a fisioterapia mais evoluiu dando o seu contributo para a resolução de problemas sociais e políticos. Ao olharmos para tempos passados percebemos a génese do modelo que vigora atualmente na fisioterapia. A relação umbilical com a terapia manual e toque foi essencial para ultrapassar os escândalos sexuais da época vitoriana e quebrar a barreira da sensualidade. Para esse efeito, muito contribuiu a criação da terapia manual associada a dor como estratégia de dominância do paciente enquanto sujeito passivo e diferenciação face a outras técnicas de massagem. A adaptação dos exercícios propostos por Ling transformados em remedical exercises e a criação de ginásios de fisioterapia e reabilitação onde se misturava um espaço para exercício com gabinetes individuais de tratamento. Contudo parte do segredo para o sucesso residiu no alinhamento reducionista que via o ser humano como uma máquina. A visão biomecânica do corpo alinhada com o imaginário potenciado pela industrialização da sociedade permitiu que os fisioterapeutas se tornassem artesãos e replicando uma série de técnicas com a finalidade de atingir a CURA. Esta, como Platão descreve no livro “a Republica” foi durante anos o sentido da medicina, pois deverá ter como objetivo tratar os defeitos dos doentes e não um objetivo financeiro. É aí que se encontrará a arte da medicina pois o médico não deve procurar o que lhe é vantajoso a si, mas sim ao doente.


Contudo, com a crise petrolífera de 1973, verificaram-se mudanças profundas nos estados e, consequentemente, nas pessoas que conduziram à vida moderna tal como a conhecemos hoje. O neo-liberalismo foi um game changer no paradigma que reinava na saúde pois verificou-se uma menor participação do estado na saúde (fim do wellfare state) o que levou à privatização da mesma. Com maior liberdade de escolha e decisão o doente transformou-se em cliente e paulatinamente emergiu um novo mercado de venda vocacionado para o consumidor em saúde. Perdeu-se a ideia da saúde enquanto estado binário (saúde vs doença) para se criar um conceito de saúde ótima que se converteu a posteriori numa forma de culto: os body projects. Ambicionamos uma saúde que não temos assente na visão estruturalista de um corpo perfeito. Focamo-nos na estrutura e na forma, caindo numa passividade quasi mortal. Neste hiato temporal, deixamos que uma vaga de marasmo tomasse conta da profissão. Nesse piscar de olhos os corpos que antes eram máquinas “ganharam vida”. São hoje corpos vivos, espirituais, sociais, culturais e económicos. Perdemo-nos no medo, na constatação da complexidade do corpo e ficamo-nos pelos músculos e pelas articulações. Mas há que despertar do SONO que tem perdurado ao longo dos últimos anos. Há que perder o hábito de nos focarmos nos soft e small targets (postura, alinhamentos, músculos fracos, fortes) e empenharmo-nos em hard and big targets (saúde comunitária, cuidados de saúde primários, determinantes sociais e ambientais relacionados com patologias com “futuro”).


Vivemos numa luta entre as vacas sagradas da profissão, as nossas crenças enraizadas e o futurismo da evidencia científica Contudo, o estado de arte não tem tido uma relação pacifica com os fisioterapeutas (e não com a fisioterapia) e isso é percetível na seguinte infografia, onde podemos avaliar a adesão destes à escrita científica ao longo dos últimos 30 anos. 



Contudo o método científico é, indubitavelmente, uma ferramenta extremamente útil pois mostra-nos claramente que há novos mercados emergentes na fisioterapia (quedas, envelhecimento da população, diabetes, obesidade, dor cronica, etc) precipitando a queda dos ideais utópicos de cura pressuposto por Platão, e abraçando a ideia de manuseamento.


Mas a evidência científica por si só poderá não chegar. “Não podemos compreender a realidade sem números nem vê-la só através de números”. Há que ser louco e trazer a arte, a cultura, a filosofia e as ciências sociais, o marketing, os influencers, a antropologia, os designers para a fisioterapia. Não podemos crescer num legado de mortos, mas devemos levar o melhor do antigo para o futuro. Devemos colocar o foco no ensino, na educação e na cultura. Que o façamos primeiro connosco enquanto classe para que saibamos faze-lo com quem cruza o nosso caminho. Somos uma profissão do futuro e é no mínimo curioso podermos afirmar que este está nas nossas MÃOS. Que saibamos conectar-nos com as pessoas, o ambiente, o contexto e o tempo. Que saibamos moldá-lo e dar-lhe forma pois, seguramente, o FUTURO será entusiasmante.


Referências Bibliográficas


24/7 , livro de Jonathan Crary

1984, livro de George Orwell

The End of Physiotherapy, livro de David Nicholls

A República , livro de Platão

A arte subtil de dizer que se f*da, livro de Mark Manson

FactFullness , livro de Hans Rosling



Ricardo Vieira,
Fisioterapeuta | Osteopata | Blogger | CEO & Founder EMOV

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Fonte:

CareTrack: assessing the appropriateness of health care delivery in Australia

Has physical therapists' management of musculoskeletal conditions improved over time?

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