Saúde

Estimulação transcraniana por corrente contínua: uma técnica emergente na área da reabilitação

É uma técnica de neuroestimulação não-invasiva que permite modular a excitabilidade cortical e ativar estados de prontidão neuroplástica.

Artigo escrito por Carlos Campos, investigador na área das Neurociências no Laboratório de Neuropsicofisiologia na Universidade do Porto e no Centro de Investigação em Reabilitação da Escola Superior de Saúde do Politécnico do Porto.


A estimulação transcraniana por corrente contínua é uma técnica de neuroestimulação não-invasiva que permite modular a excitabilidade cortical e ativar estados de prontidão neuroplástica, que podem ser recrutados para efeitos da reabilitação.


1.1. O que é a estimulação transcraniana por corrente contínua?


A estimulação transcraniana por corrente contínua, comumente designada por tDCS, é uma técnica de neuromodulação não-invasiva que consiste na aplicação de uma corrente elétrica contínua de baixa intensidade (0.5 - 2 mA) através de elétrodos que são colocados em contacto com o escalpe. Os protocolos mais comuns utilizam dois elétrodos de borracha (um ânodo e um cátodo) inseridos em esponjas embebidas em solução salina, de forma a promover a condutividade da corrente e a reduzir o desconforto da pessoa que está a receber a estimulação [1,2].


A aplicação de dois elétrodos em contacto com o escalpe, alimentados por um neuroestimulador, permite a formação de um circuito elétrico fechado do qual faz parte o crânio da pessoa. Assim, a corrente elétrica atinge o tecido cerebral, permitindo modular a excitabilidade cortical das regiões cerebrais situadas no percurso da corrente. Existem dois tipos principais de protocolos de tDCS: protocolos de estimulação anódica, que visam aumentar a excitabilidade cortical da região alvo; protocolos de estimulação catódica, que visam induzir um estado de inibição cortical na região de interesse [3].


1.2. Estimulação transcraniana por corrente contínua e neuroplasticidade


Os mecanismos neurobiológicos da tDCS são atualmente bastante compreendidos, apesar de existirem ainda uma série de questões por responder [4-6]. Durante a administração da estimulação, a corrente contínua aplicada permite modular a excitabilidade cortical através da interferência na probabilidade de abertura de canais iónicos dependentes de voltagem. No caso da estimulação anódica, existe um aumento da probabilidade de abertura destes canais, levando a uma despolarização dos neurónios estimulados e consequente incremento da ocorrência de disparos neuronais espontâneos. Em contraste, na estimulação catódica, verifica-se uma redução da probabilidade destes canais iónicos se abrirem, o que induz uma hiperpolarização dos neurónios e consequente diminuição da taxa de disparo neuronal espontâneo. Assim, importa destacar que, ao contrário de outras técnicas de neuroestimulação, a tDCS não induz instantaneamente potenciais de ação, modulando apenas a probabilidade dos neurónios estimulados dispararem de forma espontânea.


Já os efeitos a longo prazo da tDCS, isto é, as alterações neurobiológicas que se mantêm ao longo do tempo após a sessão de estimulação terminar, são mais difíceis de descrever com detalhe. No entanto, hoje em dia é cada vez mais claro que estes efeitos envolvem os mecanismos de potenciação a longo prazo (LTP), um conjunto de processos associados ao fortalecimento das relações sinápticas estabelecidas entre neurónios. Além disso, existe evidência bastante clara que a tDCS tem um papel modulador de vários sistemas de neurotransmissores no cérebro, com especial destaque para a via excitatória glutamatérgica e a via inibitória GABAérgica [6]. Apesar de existirem outros mecanismos potencialmente envolvidos, a evidência atual indica que os mecanismos de LTP e modulação de neurotransmissores parecem ser as peças centrais para as alterações funcionais nas ligações entre neurónios (neuroplasticidade) após a tDCS [4-6].


1.3. Quais as vantagens da estimulação transcraniana por corrente contínua?


Existem inúmeras técnicas de neuroestimulação não-invasiva que estão a ser exploradas para efeitos de reabilitação, nomeadamente a estimulação magnética transcraniana, a estimulação do nervo vago, a estimulação transcraniana por corrente alternada, entre outras. No entanto, a tDCS apresenta um conjunto de características que lhe conferem um maior potencial para a aplicação em contexto clínico [1,2].


Em primeiro lugar, é uma técnica que pode ser considerada de baixo custo, dado que o neuroestimulador envolve um circuito elétrico simples e os consumíveis utilizados na sua aplicação não são dispendiosos. Mais ainda, apesar da complexidade dos mecanismos neurobiológicos subjacentes, a tDCS é uma técnica simples e fácil de aprender do ponto de vista da sua aplicação prática. Além disso, o equipamento é de pequena dimensão e portátil, o que permite a sua aplicação em inúmeros contextos, incluindo a intervenção no domicílio. Por fim, uma vantagem adicional extremamente pertinente é a ausência de efeitos secundários significativos após a sua administração [7]. A pessoa que realiza uma sessão de tDCS apenas sente algum desconforto (comichão, ardor, etc) nas regiões do escalpe onde estão os elétrodos durante a estimulação, mas essas sensações terminam pouco depois da cessação da corrente. Efeitos adversos mais graves (lesões cutâneas, dores de cabeças, etc) apenas poderão ocorrer caso o procedimento esteja a ser incorretamente administrado, não cumprindo as normas de segurança e/ou critérios de dosagem recomendados [8,9].


1.4. Evidência da estimulação transcraniana em contexto de reabilitação


Poucos anos após os estudos iniciais que estabeleceram o potencial da tDCS para modular a excitabilidade cortical e promover processos neuroplásticos, começaram a ser desenhados e implementados inúmeros ensaios clínicos que visavam testar a sua aplicabilidade como método de tratamento e reabilitação. Hoje em dia, já existe evidência acumulada em múltiplas áreas de intervenção que permite sistematizar o estado da arte sobre a eficácia desta técnica [10].


A tDCS apresenta um nível de evidência muito consolidado para a intervenção em perturbações depressivas, sendo eficaz na redução dos sintomas depressivos experienciados por esta população clínica. Além disso, a evidência é já bastante robusta em várias condições clínicas relacionadas com a dor, incluindo fibromialgia, dor neuropática, enxaquecas e dor aguda pós-operativa. Existe também evidência bastante sólida ao nível da reabilitação da função motora após acidente vascular encefálico ou em consequência da doença de Parkinson. A tDCS está a ser explorada hoje em dia num vasto conjunto de condições clínicas (afasia, síndrome de dor miofascial, perturbação obsessivo-compulsiva, etc), mas a eficácia da técnica para estas populações não é ainda clara, pelo que se deverá aguardar por resultados adicionais.


Importa destacar por fim a tendência mais atual dos estudos na área da saúde que visam combinar a tDCS com outros métodos de reabilitação baseados na neuroplasticidade, uma abordagem que poderá ser extremamente interessante para maximizar os resultados de intervenção e tornar esta técnica uma prática cada vez mais generalizada nos hospitais e nas clínicas.



Referências Bibliográficas


1. Kadosh, R. C. (2014). The stimulated brain: Cognitive enhancement using non-invasive brain stimulation. Elsevier Science.


2. Knotkova, H., Nitsche, M. A., Bikson, M., & Woods, A. J. (2019). Practical Guide to Transcranial Direct Current Stimulation Principles, Procedures and Applications. Springer.


3. Dissanayaka, T., Zoghi, M., Farrell, M., Egan, G. F., & Jaberzadeh, S. (2017). Does transcranial electrical stimulation enhance corticospinal excitability of the motor cortex in healthy individuals? A systematic review and meta-analysis. The European Journal of Neuroscience, 46(4), 1968–1990. https://doi.org/10.1111/ejn.13640


4. Stagg, C. J., & Nitsche, M. A. (2011). Physiological Basis of Transcranial Direct Current Stimulation. The Neuroscientist, 17(1), 37–53. https://doi.org/10.1177/1073858410386614


5. Roche, N., Geiger, M., & Bussel, B. (2015). Mechanisms underlying transcranial direct current stimulation in rehabilitation. Annals of Physical and Rehabilitation Medicine, 58(4), 214–219. https://doi.org/10.1016/j.rehab.2015.04.009


6. Krause, B., Márquez-Ruiz, J., & Kadosh, R. C. (2013). The effect of transcranial direct current stimulation: A role for cortical excitation/inhibition balance? Frontiers in Human Neuroscience, 7. https://doi.org/10.3389/fnhum.2013.00602


7. Fertonani, A., Ferrari, C., & Miniussi, C. (2015). What do you feel if I apply transcranial electric stimulation? Safety, sensations and secondary induced effects. Clinical Neurophysiology: Official Journal of the International Federation of Clinical Neurophysiology, 126(11), 2181–2188. https://doi.org/10.1016/j.clinph.2015.03.015


8. Antal, A., Alekseichuk, I., Bikson, M., Brockmöller, J., Brunoni, A. R., Chen, R., Cohen, L. G., Dowthwaite, G., Ellrich, J., Flöel, A., Fregni, F., George, M. S., Hamilton, R., Haueisen, J., Herrmann, C. S., Hummel, F. C., Lefaucheur, J. P., Liebetanz, D., Loo, C. K., … Paulus, W. (2017). Low intensity transcranial electric stimulation: Safety, ethical, legal regulatory and application guidelines. Clinical Neurophysiology, 128(9), 1774–1809. https://doi.org/10.1016/j.clinph.2017.06.001


9. Bikson, M., Grossman, P., Thomas, C., Zannou, A. L., Jiang, J., Adnan, T., Mourdoukoutas, A. P., Kronberg, G., Truong, D., Boggio, P., Brunoni, A. R., Charvet, L., Fregni, F., Fritsch, B., Gillick, B., Hamilton, R. H., Hampstead, B. M., Jankord, R., Kirton, A., … Woods, A. J. (2016). Safety of Transcranial Direct Current Stimulation: Evidence Based Update 2016. Brain Stimulation, 9(5), 641–661. https://doi.org/10.1016/j.brs.2016.06.004


10. Fregni, F., El-Hagrassy, M. M., Pacheco-Barrios, K., Carvalho, S., Leite, J., Simis, M., Brunelin, J., Nakamura-Palacios, E. M., Marangolo, P., Venkatasubramanian, G., San-Juan, D., Caumo, W., Bikson, M., Brunoni, A. R., & Neuromodulation Center Working Group. (2021). Evidence-Based Guidelines and Secondary Meta-Analysis for the Use of Transcranial Direct Current Stimulation in Neurological and Psychiatric Disorders. International Journal of Neuropsychopharmacology, 24(4), 256–313. https://doi.org/10.1093/ijnp/pyaa051

Ver Mais

Partilha este artigo

Share to Facebook Share to Twitter Share to Google + Share to Mail

Cursos Relacionados

Newsletter Fica a saber tudo para seres cada vez melhor. Regista-te aqui!