Saúde

Realidade virtual – o futuro da reabilitação pós-AVC?

Realidade virtual apontada como um dos dispositivos primordiais no futuro da reabilitação pós-AVC

Evidência científica recente suporta a utilização da realidade virtual na reabilitação pós-AVC, sublinhando, contudo, a necessidade de analisar os resultados com ponderação, uma vez que continuam por esclarecer uma série de questões relativas às características dos utilizadores e da tecnologia, à especificidade do treino, bem como à relação custo-benefício.


Apesar dos progressos significativos dos últimos anos na intervenção pós-AVC e da consequente redução da taxa de mortalidade, a incidência de incapacidade residual nos sobreviventes é muito elevada [1]. Actualmente, o AVC é a causa mais comum de incapacidade a longo prazo em adultos [2]. O nível da recuperação e da adaptação depende de muitos factores, sendo os mais preponderantes a extensão inicial e a localização da lesão encefálica, bem como o nível de sucesso das terapias [1, 2]. Neste campo, sabe-se que a elevada intensidade e repetição de movimentos especificamente dirigidos para os défices motores encontrados, bem como a presença de feedback relativo ao desempenho são factores que optimizam a recuperação [3].


Assim, na última década, a terapia manual convencional para indivíduos com sequelas de AVC tem sido frequentemente associada a dispositivos tecnológicos com o intuito de aumentar a intensidade, a repetição, a especificidade e o feedback durante a reabilitação [3]. realidade virtual é apontada como um dos dispositivos primordiais no futuro da reabilitação pós-AVC. 


Recorrendo a tecnologia computorizada, a realidade virtual cria ambientes virtuais com objectos e situações semelhantes aos do mundo real, permitindo a interacção com os mesmos e a aprendizagem sensório-motora através de feedback visual, auditivo e/ou táctil relativo aos resultados e/ou ao desempenho [2, 4].


As grandes vantagens da sua utilização são: (a) a simulação de tarefas funcionais semelhantes às do mundo real, o que aumenta a validade ecológica desta tecnologia, comparativamente às terapias convencionais [5]; (b) a criação de um ambiente rico e motivador que estimula a participação activa do indivíduo durante mais tempo, mais vezes e com mais intensidade [1-5]; (c) e a oportunidade de manipular a intensidade e o feedback, criando tratamentos individualizados [2-4]. O fornecimento de feedback visual relativo ao padrão e precisão do movimento, através da observação de um avatar - corpo virtual que simula o corpo e os movimentos do participante, em tempo real - poderá ser uma vantagem interessante a acrescentar à lista anteriormente referida.


O interesse está na hipótese da observação da execução ou da intenção de um movimento facilitar a reorganização dos sistemas motor e pre-motor afectados pelo AVC, através do recrutamento de redes neuronais alternativas, nomeadamente o sistema de neurónios-espelho [6]. Este sistema é activado quer durante a execução de acções motivadas pela concretização de um objectivo, quer durante a observação da execução dessas mesmas ações por outros indivíduos [7]. 


Diversos sistemas de realidade virtual têm sido desenvolvidos e estudados mundialmente. Em 2012 e 2013, foram publicadas uma revisão Cochrane [5] e uma análise do estado de arte relativo à temática [8], respectivamente. Apesar de ter sido identificada evidência que suporta a utilização da realidade virtual, em detrimento da terapia convencional, na recuperação da função dos membros superiores especificamente, os autores destas publicações sublinharam a necessidade de analisar os resultados com ponderação, uma vez que continuam por esclarecer uma série de questões relativas às características dos utilizadores e da tecnologia, à especificidade do treino, bem como à relação custo-benefício [8]. 


A maior parte dos estudos possui uma amostra pequena, maioritariamente jovem e activa, que apresenta défices motores moderados e que se encontra na fase crónica [5,8]. Considerando a idade e nível de actividade física mais frequentes dos indivíduos atingidos, poderá esta tecnologia apresentar os mesmos resultados numa população idosa e sedentária? O grau de adesão será o mesmo? E quanto ao nível de comprometimento motor, será a realidade virtual indicada para casos mais graves? E na fase aguda? Acresce ainda que nenhum dos estudos descreve as capacidades cognitivas, perceptivas e sensoriais dos participantes, desconsiderando a necessidade de existirem requisitos cognitivos e perceptuais mínimos para a utilização da realidade virtual na reabilitação (8).


Relativamente às características da tecnologia usada, os sistemas de detecção do movimento tridimensionais (3D) têm sido os mais utilizados. Comparativamente aos sistemas bidimensionais (2D), os 3D melhoram a fidelidade do movimento, o que não se traduz, no entanto, em melhorias superiores da função motora nas actividades da vida diária (AVD) [8]. Serão os sistemas 2D tão eficazes quanto os 3D na redução dos défices motores e na promoção da actividade? Poderão os sistemas 2D permitir a identificação das estratégias compensatórias utilizadas pelos pacientes? Qual a relação custo-benefício?


Relativamente ao tipo de tarefa realizada, têm-se alcançado melhores resultados com os sistemas cujas simulações replicam tarefas da vida diária, como por exemplo alcançar objectos numa prateleira, comparativamente a tarefas baseadas em jogos, como por exemplo pilotar um avião [8]. Contudo, os autores das revisões referidas realçaram a diversidade de intervenções e metodologias utilizadas e a ausência de evidência relativa ao tipo de programa mais efectivo, nomeadamente no que diz respeito ao n.º de sessões, n.º de repetições e feedback utilizado [5,8]. 


No que diz respeito à apresentação do feedback fornecido, todos os sistemas têm incluído feedback visual e auditivo. Os sistemas que envolvem feedback táctil têm apresentado resultados ligeiramente superiores [8]. Existem sistemas que dão informação relativa à concretização do objectivo do movimento, ou seja, o participante “conhece os resultados”, e outros que fornecem informação acerca da estratégia do movimento utilizada, isto é, o participante “conhece o desempenho”. Apesar do “conhecimento dos resultados” ser o tipo de feedback mais utilizado, não existe evidência relativa à sua superioridade comparativamente ao “conhecimento do desempenho” ou até da combinação de ambos [8]. 


progressão da terapia tem sido controlada, na maioria dos estudos, por algoritmos gerados pelo software, que se baseiam em parâmetros do movimento registados, sem considerar a opinião do clínico. No entanto, não existe evidência de que estes algoritmos sejam tão ou mais fiáveis que a tomada de decisão de um expert [8]. 


As conclusões e questões levantadas pelos autores das revisões apontam assim para a necessidade de esclarecer se a realidade virtual será opção para idosos e sedentários, quais os requisitos sensório-motores e cognitivos mínimos para a sua utilização, qual o tipo de tecnologia mais adequado e com uma boa relação custo-benefício, bem como o tipo de programa mais efectivo. Será a realidade virtual o futuro da reabilitação pós-AVC? 


Autora do artigo: Inês Mesquita é fisioterapeuta, mestre e doutoranda em neurologia. A par da sua prática clínica exerce o cargo de docente da área técnico-científica de Ciências Funcionais na Escola Superior de Saúde do Porto, integrando, desde 2013, o júri de defesa de projectos de investigação da Licenciatura em Fisioterapia na mesma instituição. 

Ver Mais

Fonte:

1. Brewer L, Horgan F, Hickey A, Williams D. Stroke rehabilitation: recent advances and future therapies. QJM. 2013;106(1):11-25. 2. Albert SJ, Kesselring J. Neurorehabilitation of stroke. J Neurol. 2012;259(5):817-32

2. Albert SJ, Kesselring J. Neurorehabilitation of stroke. J Neurol. 2012;259(5):817-32

3. Iosa M, Morone G, Fusco A, Bragoni M, Coiro P, Multari M, et al. Seven capital devices for the future of stroke rehabilitation. Stroke Res Treat. 2012;2012:187965

4. Subramanian SK, Lourenço CB, Chilingaryan G, Sveistrup H, Levin MF. Arm motor recovery using a virtual reality intervention in chronic stroke: randomized control trial. Neurorehabil Neural Repair. 2013;27(1):13-23

5. Laver K, George S, Thomas S, Deutsch JE, Crotty M. Cochrane review: virtual reality for stroke rehabilitation. Eur J Phys Rehabil Med. 2012;48(3):523-30

6. Cameirão MS, Badia SB, Oller ED, Verschure PF. Neurorehabilitation using the virtual reality based Rehabilitation Gaming System: methodology, design, psychometrics, usability and validation. J Neuroeng Rehabil. 2010;7:48.

7. Mukamel R, Ekstrom AD, Kaplan J, Iacoboni M, Fried I. Single-neuron responses in humans during execution and observation of actions. Curr Biol. 2010;20(8):750-6.

8. Fluet GG, Deutsch JE. Virtual Reality for Sensorimotor Rehabilitation Post-Stroke: The Promise and Current State of the Field. Curr Phys Med Rehabil Rep. 2013;1(1):9-20.

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