Saúde

O papel da Fisioterapia na dor pélvica crónica na mulher [1/2]

Dor pélvica crónica: a Fisioterapia para lá dos exercícios de Kegel

Dor pélvica crónica feminina é a denominação dada ao grupo de patologias que têm impacto na saúde uroginecológica da mulher, sendo definida pela European Urology Association [1] como “uma dor não maligna que é sentida nas estruturas adjacentes à pélvis que poderá ser constante ou recorrente”. As queixas álgicas devem estar presentes há mais de 6 meses para que o diagnóstico de dor pélvica crónica possa ser efectuado.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) descreve que a prevalência de dor pélvica crónica abrange entre 2.1 a 24% da população feminina, sendo esta mais prevalente na população do sexo feminino em idade fértil. [2] Devido ao tabu que está tradicionalmente inerente às condições pélvicas a grande maioria dos países não faz um levantamento da prevalência epidemiológica desta condição, porém sabe-se que nos Estados unidos da América e na Nova Zelândia 15% e 24% das mulheres sofrem desta patologia, respectivamente. [3]
 
Estima-se que cerca de 60% das mulheres com esta condição não recebem um diagnóstico específico, sendo que  20% não procuram investigar as causas da dor [4]. 39% das mulheres vistas nos cuidados primários apresentam queixas de dor pélvica, sendo também resultantes de 40-50% das laparoscopias ginecológicas, 10% das consultas ginecológicas e 12% das histerectomias. [5]  
 
Tanto em Portugal como no Brasil, não existem estudos que avaliem o impacto económico da dor pélvica crónica porém sabe-se que noutros países desenvolvidos, esta condição está entre as principais causas de hospitalização ginecológica. [6] Especula-se que estas condições têm um impacto económico elevado a nível Mundial, dando destaque ao relatório da Pelvic Pain Foundation Australiana que estimou que esta patologia, na Austrália apenas, se reproduz numa despesa de cerca 6.6 biliões de dólares em despesas directas relacionadas com hospitalização e tratamentos, salientando ainda que este valor não inclui os custos indirectos que esta condição acarreta sobre as famílias e as mulheres.  
 
O Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RCOG) [7] preconiza que os factores etiológicos de dor pélvica crónica podem agrupar-se em dois conjuntos:  ginecológicos e extra-ginecológicos. Nos factores ginecológicos incluem-se a endometrioses e adenomiose, o síndrome de congestão pélvica, fibroides uterinos, tumores dos ovários, doença pélvica inflamatória e aderências ou condições tecidulares ou neuromusculares locais idiopáticas ou resultantes do pós operatórias e pos inflamação. 
 

Por outro lado, os factores extra-ginecológicos poderão ter a sua génese em:
- Sequelas pós-cirúrgicas (apendicite crónica e aderências), 
- Condições urológicas (cistite intersticial, inflamação urinária crónica, urolitíase e síndrome uretral)
- Condições gastrointestinais (síndrome do cólon irritável, obstipação e doenças inflamatórias do intestino)
- Condições ortoneuromusculares (alterações sistémicas eg. fibromialgia [6] e neurodegenerativas, neuropatias, hérnia do núcleo pulposo e compressão neural)
- Alterações entendidas como psicossomáticas (depressão, distúrbios de sono, ansiedade, dores de cabeca com sintomas abdominais, história de abuso sexual)
- Alterações Neurológicas (compressão ou hipo mobilidade neural devido a uma cicatriz)
 
A literatura é unânime no que concerne a associação entre a presença de dor pélvica crónica e uma sensibilidade nocioceptiva aumentada em zonas não pélvicas [8] [9], o que sugere que exista centralização e amplificação da dor. Este fenómeno também poderá explicar a falta de resposta a terapias que eliminam as lesões associadas à endometriose em algumas mulheres com dor pélvica [10] Assim, as alterações sistémicas presentes em casos de dor pélvica crónica, poderão ser também alegadamente fruto da centralização da dor e da hiperalgesia visceral,  podendo assim mesmo persistir após o tratamento e na ausência de patologia. [6] [10]
 
O envolvimento do sistema muscular como origem ou perpetuador da dor na dor pélvica crónica, tem sido amplamente estudado e demonstrado. [11-18]. Existe evidência que suporta que cerca de 85% dos utentes com dor pélvica crónica apresentam disfunção do sistema muscular pélvico, através de espasmos ou aumento do tónus dos músculos intrínsecos pélvicos e do piriformis[19]. Estas alterações pensa-se que poderão levar à adopção de posturas alteradas, tendo sido evidenciado que existe tendencialmente uma postura hiperlordótica com extensão dos joelhos e anteriorização da pélvis. [19] [20] Consequentemente, este padrão postural poderá exacerbar e perpetuar a dor. [19] [20]

 
O aumento do tónus no pavimento pélvico encontra-se entre as causas primárias ou secundárias de dor pélvica. [11, 14, 19] Sao diversos os mecanismos que poderão originar um  trauma localizado e consequente aumento de tónus muscular, tais como um parto vaginal traumático, uma cirurgia pélvica, posturas inadequadas e mantidas (ex: na posição de sentado), lesão traumática da pélvis ou da coluna, exercício físico excessivo, fraqueza muscular ou hábitos urinários e de higiene íntima inadequados. [19]  
 
Ler 2.ª parte do artigo aqui: O papel da Fisioterapia na dor pélvica crónica na mulher [2/2]

 
Referências:
1. Fall, M., et al., EAU guidelines on chronic pelvic pain. Eur Urol, 2010. 57(1): p. 35-48. | 2. Latthe, P., et al., WHO systematic review of prevalence of chronic pelvic pain: a neglected reproductive health morbidity. BMC Public Health, 2006. 6: p. 177. | 3. Evans, S., Chronic pelvic pain in Australia and New Zealand. Vol. 52. 2012. 499-501. | 4. Cheong, Y. and R. William Stones, Chronic pelvic pain: aetiology and therapy. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol, 2006. 20(5): p. 695-711. | 5. Gambone, J.C., et al., Consensus statement for the management of chronic pelvic pain and endometriosis: proceedings of an expert-panel consensus process. Fertil Steril, 2002. 78(5): p. 961-72. | 6. Jamieson, D.J. and J.F. Steege, The prevalence of dysmenorrhea, dyspareunia, pelvic pain, and irritable bowel syndrome in primary care practices. Obstet Gynecol, 1996. 87(1): p. 55-8. | 7. National Guideline, C. The initial management of chronic pelvic pain. 2012; Available from: https://www.guideline.gov/summaries/summary/37221. | 8. Aredo, J.V., et al., Relating Chronic Pelvic Pain and Endometriosis to Signs of Sensitization and Myofascial Pain and Dysfunction. Semin Reprod Med, 2017. 35(1): p. 88-97. | 9. Young, K., J. Fisher, and M. Kirkman, Women's experiences of endometriosis: a systematic review and synthesis of qualitative research. J Fam Plann Reprod Health Care, 2015. 41(3): p. 225-34. | 10. Wozniak, S., Chronic pelvic pain. Annals of Agricultural and Environmental Medicine, 2016. 23(2): p. 223-226. | 11. Bradley, M.H., A. Rawlins, and C.A. Brinker, Physical Therapy Treatment of Pelvic Pain. Phys Med Rehabil Clin N Am, 2017. 28(3): p. 589-601. | 12. Montenegro, M.L., et al., Physical therapy in the management of women with chronic pelvic pain. Int J Clin Pract, 2008. 62(2): p. 263-9. | 13. Friggi Sebe Petrelluzzi, K., et al., Physical therapy and psychological intervention normalize cortisol levels and improve vitality in women with endometriosis. J Psychosom Obstet Gynaecol, 2012. 33(4): p. 191-8. | 14. Temme, K.E. and J. Pan, Musculoskeletal Approach to Pelvic Pain. Phys Med Rehabil Clin N Am, 2017. 28(3): p. 517-537. | 15. Martinez, B., et al., Management of patients with chronic pelvic pain associated with endometriosis refractory to conventional treatment. Pain Pract, 2013. 13(1): p. 53-8. | 16. Heyman, J., J. Ohrvik, and J. Leppert, Distension of painful structures in the treatment for chronic pelvic pain in women. Acta Obstet Gynecol Scand, 2006. 85(5): p. 599-603. | 17. Wurn, B.F., et al., Decreasing dyspareunia and dysmenorrhea in women with endometriosis via a manual physical therapy: Results from two independent studies. Journal of Endometriosis and Pelvic Pain Disorders, 2012. 3(4): p. 188-196. | 18. Dos Bispo, A.P., et al., Assessment of pelvic floor muscles in women with deep endometriosis. Arch Gynecol Obstet, 2016. 294(3): p. 519-23. | 19. Prendergast, S.A. and J.M. Weiss, Screening for musculoskeletal causes of pelvic pain. Clin Obstet Gynecol, 2003. 46(4): p. 773-82.
 
Autora do artigo:
Aline Filipe é fisioterapeuta especialista em pelviperineologia e uroginecologia, presentemente a exercer na clínica Mosman Women’s Health/SquareOne, em Sydney (Austrália), sendo a criadora do The Pelvic Tuner, uma plataforma educacional e de advocacia para as condições do pavimento pélvico. Da formação especializada que apresenta destaca-se:
- Women’s Health and Nutrition Coach pelo Integrative Women's Health Institute, USA
- Pós-graduação em Saúde da Mulher pela ESTESL
- Licenciatura em Fisioterapia pela Escola Superior de Saúde de Alcoitão 
- Instrutora de Clinical Pilates 
- Instrutora de Therapeutic Yoga com especial foque na dor pélvica feminina 
- PINC cancer rehab certified Physiotherapist 
- Master em técnicas hipopressivas – Método Hipopressivo M. Caufriez
- Formação específica avançada em dor pélvica, disfunções sexuais e uro-fecais por Tarryn Hallam, Women’s health training associates
- Formação específica em neurologia e neuro dinâmica do pavimento pélvico por Sandy Hilton
- Formação específica em reabilitação do pavimento pélvico em Pediatria, na dor pélvica e na disfunção sexual masculina na dor e pós tratamento oncológico

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