Saúde

O papel da Fisioterapia na dor pélvica crónica na mulher [2/2]

Qual será então o papel do Fisioterapeuta na dor pélvica crónica?

A dor pélvica crónica é acompanhada por alterações neuro-músculo-esqueléticas e endócrinas que podem exacerbar e perpetuar a sintomatologia. O Fisioterapeuta deverá assumir papel de relevo na equipa multidisciplinar, tanto na reabilitação do pavimento pélvico e diminuição de dor, quanto na melhoria da qualidade de vida destes utentes.

Fisioterapeuta terá de assumir um papel preponderante na anamnese, ao nível da recolha da história traumática, ginecológica e obstétrica, localização, características e padrões de dor, possível relação com os ciclos menstruais ou condições gastrointestinais e comportamento ao nível das actividades da vida diárias, incluindo a função sexual.[19] Dada a importância dos factores psicossomáticos nesta condição de saúde [21-23], o Fisioterapeuta deverá também despistar a presença de traumas psicológicos e referir para outros profissionais de saúde relevantes, quando necessário. 

O exame objectivo deverá passar pela análise postural activa funcional e passiva, e pelo exame físico global, tendo especial atenção, inicialmente, às regiões abdominal, lombar, sagrada e bacia. [11, 19]   
A avaliação do pavimento pélvico deverá ser efectuada de forma delicada dada a hiperalgesia local. Deverão ser recolhidos dados acerca do tónus em repouso e em actividade, regiões dolorosas à palpação e dermatomas pélvicos com alteração da condução neural e padrão de activação muscular pélvica. [11, 19] 

Não há consenso no que concerne a maior efectividade de determinadas técnicas em detrimento de outras [24], dada a complexidade desta patologia, pelo que uma abordagem multifactorial é geralmente eleita e aconselhada. [10] [12, 19] Ainda que a avaliação e tratamento pélvico interno não sejam indicados em todos os casos, técnicas como alongamento, biofeedback, terapia manual, estimulação eléctrica – sacral, no nervo pudendo e tibial posterior [25] - e finalmente fortalecimento, são aconselhadas em particular em condições de hipertonia do pavimento pélvico (é importante referir que estas técnicas de fortalecimento são marginalmente diferentes dos exercícios tradicionais de Kegel).

Não obstante, a literatura é clara acerca dos efeitos positivos que a Fisioterapia poderá ter na dor pélvica crónica ao nível da redução do stress, normalização dos níveis de cortisol e aumento de funcionalidade geral [13], assim como ao nível da diminuição de dor pélvica e diminuição da dispareunia [11-14, 23, 26]. 

Sendo a Dispareunia uma condição de alta prevalência em pacientes com dor pélvica crónica [6, 14, 17, 22, 27, 28], chegando aos 60-70% na endometriose [23]), e que pode afectar as várias fases da função sexual desde o desejo e excitação, a lubrificação e orgasmo, torna-se crucial contemplar estes elementos. Abordar não somente a componente neuromuscular e de tecidos moles [14, 19, 23, 29], mas também questões como a qualidade e experiência de dor, o medo e antecipação de dor que podem resultar grandes inibidores do ciclo da resposta sexual [5, 9, 27], deverá ser parte das competências do Fisioterapeuta.

Dada a cronicidade e o carácter sistémico desta condição, é importante que o Fisioterapeuta esteja familiarizado com a terapêutica farmacológica mais comum na gestão da sintomatologia. Inicialmente a medicação anti-inflamatória não esteróide é habitualmente a terapia de eleição, sendo a amitriptilina, bafoclen e Ciclobenzaprina as mais comuns. [11, 12, 27] No caso específico da endometriose, drogas psicoactivas estão a ser testadas em mulheres com sintomas severos de dor, porém, as mesmas poderão não ter efeitos a longo-prazo. [5, 27] Ambas a Gabapentina e a pregabalina demonstram efeitos promissores ao nível da melhoria da mialgia do pavimento pélvico. [5, 27]. Adicionalmente, a administração local de lidocaína, com ou sem cortisona, parece também ter sucesso no tratamento da componente miofascial da dor [5, 27], assim como, mais recentemente a botulina tóxica (Botox) [5, 27] parece sugerir ter efeitos ao nível da melhoria da dismenorreia, dispareunia, função sexual e qualidade de vida. [8] 

Ainda que a terapia hormonal e a cirurgia sejam as terapias de eleição para algumas das condições, mais especificamente nos casos de adenomiose e endometriose [1], a literatura defende o papel fundamental da abordagem multidisciplinar como terapia adjuvante ao nível da gestão dos sintomas e tratamento. [1, 4, 5] O papel da Fisioterapia, como elemento da equipa multidisciplinar, é defendido em inúmeras diretrizes e consensos internacionais [1-5, 30]. No entanto, o papel da Fisioterapia enquanto modalidade única de tratamento não é consensual, já que não existem ainda estudos que a suportem. [11, 29]

(É importante porém mencionar o estudo de Montenegro et al[12] que sugere uma possível causalidade, assim como a relevância da Fisioterapia como modalidade terapêutica de primeira linha na dor pélvica crónica). 

Contudo, havendo evidência de que 85% das mulheres [19] com dor pélvica crónica demonstram disfunção neuromuscular e processos de centralização de dor, ainda que o sistema neuromusculoesquelético não seja consensualmente a causa primordial dos sintomas, é crucial que haja uma abordagem integradora [19] que o inclua, de forma a melhorar a qualidade de vida destas utentes.


Conclusão 
Ainda de toda a evidência que suporta a relevância da necessidade urgente de tratamento desta população, os casos de dor pélvica crónica continuam a ser mal entendidos e subdiagnosticados [12], uma situação usualmente acompanhada por uma má gestão clínica que poderá resultar em precários resultados de saúde para esta população. Dada a variedade e complexidade da sintomatologia na dor pélvica crónica, existe uma emergência para que cada caso seja tratado de uma forma individualizada, considerando sempre os sintomas da utente e o impacto da doença e do tratamento sobre a sua qualidade de vida. 

Uma equipe multidisciplinar especializada deverá ser envolvida no processo terapêutico, pois apenas assim será possível oferecer cuidados de saúde capazes de abrangerem todos os aspectos biopsicossociais da utente. A equipa multidisciplinar  idealmente  incluirá  Ginecologista/Urologista e/ou Médico de Família, Cirurgião especialista em Excisão (quando relevante), Psicólogo, Nutricionista e Fisioterapeuta. O Fisioterapeuta deverá ser um agente integrador, enquanto especialista do movimento e do pavimento pélvico, assumindo um papel de relevo ao nível da reabilitação e aumento da qualidade de vida destas utentes. 

 

Notas:

a) O quadro de dor crónica pélvica pode englobar diversas patologias com características específicas. Todavia, e dado o carácter introdutório deste artigo, foram selecionados estudos que, na maioria e exceto quando descrito, retratam a dor pélvica crónica em geral.
b) Apesar deste artigo ter incidido sobre a população feminina, a população masculina e LBGTIQ também sofre comumente de dor pélvica crónica.  No entanto, a etiologia é diferente e consequentemente a abordagem terapêutica apresenta especificidades, ainda que exista  alguma escassez em termos de suporte científico. Considerando estes factores, assim como a necessidade de sintetizar a informação, abordaremos estas populações em artigos futuros.
 

Ler 1.ª parte do artigo aqui: O papel da Fisioterapia na dor pélvica crónica na mulher [1/2]
 

Referências:

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Autora do artigo:

Aline Filipe é fisioterapeuta especialista em pelviperineologia e uroginecologia, presentemente a exercer na clínica Mosman Women’s Health/SquareOne, em Sydney (Austrália), sendo a criadora do The Pelvic Tuner, uma plataforma educacional e de advocacia para as condições do pavimento pélvico. Da formação especializada que apresenta destaca-se:
- Women’s Health and Nutrition Coach pelo Integrative Women's Health Institute, USA
- Pós-graduação em Saúde da Mulher pela ESTESL
- Licenciatura em Fisioterapia pela Escola Superior de Saúde de Alcoitão 
- Instrutora de Clinical Pilates 
- Instrutora de Therapeutic Yoga com especial foque na dor pélvica feminina 
- PINC cancer rehab certified Physiotherapist 
- Master em técnicas hipopressivas – Método Hipopressivo M. Caufriez
- Formação específica avançada em dor pélvica, disfunções sexuais e uro-fecais por Tarryn Hallam, Women’s health training associates
- Formação específica em neurologia e neuro dinâmica do pavimento pélvico por Sandy Hilton
- Formação específica em reabilitação do pavimento pélvico em Pediatria, na dor pélvica e na disfunção sexual masculina na dor e pós tratamento oncológico

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